Conforme expressei no meu artigo anterior sobre este assunto, tenho algo mais a dizer. Foi expressada pelos defensores deste novo acordo que a intenção do mesmo é atingir uma língua global e não uma língua uniformizada, uma língua que assuma a sua unidade na pluralidade com as evoluções próprias de uma entidade dinâmica e poder fazer dela um instrumento comum de união e não de separação.
Se a intenção é a expressada acima e não tenho qualquer dúvida que o seja, terá o meu maior apoio e aplauso. Construir sem impor, ajudar sem esperar retorno, melhorar sem segundas intenções são sempre objectivos altruístas que devem ser ajudados. Embora pessoalmente continue a ter ilusões e a sonhar que esse objectivo é alcançável, os 23 anos de luta inglória a tentar uma uniformização e uma evolução, sempre necessária no mundo actual dada a rapidez como se processam as novas tecnologias, tem vindo a diminuir o inicial facho de luz ao fundo do túnel que hoje não é mais que uma simples vela já quase derretida, embora ainda acesa. E quando falo de "esse objectivo" tenho em mente exactamente a uniformização. Assim, para que não se caminhe em sentidos divergentes ou mesmo paralelos, necessário é que se defina exactamente o significado das palavras, sempre sujeitas a interpretações várias. E a frase "língua global e não uma língua uniformizada, uma língua que assuma a sua unidade na pluralidade" deixa-me muitas dúvidas. O facto de "assumir a sua unidade" pressupõe de imediato uma uniformização pois se trata de ser uma única língua, que de momento não o é. Esse conceito é contraditório com o expressado anteriormente. Entendo o conceito de "unidade na pluralidade" como a utilização de uma única língua na pluralidade de vários países e isso, mais uma vez, indica-me uniformização que parece contradizer o expressado anteriormente. Tenho aqui que referir que, logicamente, sofro de deformação profissional. Tento sempre analisar com o maior pormenor possível cada palavra do texto original para que possa produzir uma tradução o mais aproximada possível da intenção do autor do texto e isso, às vezes, leva ao exagero.
Quando se fala de "globalização" a que se refere exactamente? Quais são os objectivos finais e intermediários que se pretende atingir? Que metodologia é aplicada? Que limites foram estabelecidos? Quais os benefícios que se pretende obter? Como se medem esses benefícios? Que objectividade, conhecimentos e experiência prática tem as pessoas encarregadas de definir e implementar tal projecto? Que implicações pode ter, negativas ou positivas, para um futuro a médio e longo prazo?
Para mim, e aceito que possa estar errada total ou parcialmente, globalização, sucintamente, é integrar e estender um determinado conceito a um plano mais amplo. Um exemplo concreto seria o de ampliar o campo de acção de vários grupos de animais, anteriormente com territórios individuais definidos, integrando-os num mesmo espaço muito maior ou colocar dentro de um mesmo espaço vários grupos de animais onde anteriormente só existia um grupo. O resultado pode ser catastrófico para determinados grupos que poderão ser simplesmente eliminados se forem misturados, por exemplo, carnívoros e herbívoros. De facto, é exactamente isso que está a acontecer com a globalização de certos aspectos profissionais. Vou ser concisa. O desenvolvimento da Internet, quer no aspecto de velocidade de transmissão, cada vez mais rápida, quer no aspecto de implementação territorial, cada vez com mais pessoas com possibilidade de acesso, tornou possível que tradutores sediados num determinado país possam fazer trabalhos de tradução para empresas de tradução ou clientes finais sediados em qualquer parte do mundo. À primeira vista poderia parecer que só traria benefícios. Porém o resultado prático é que tradutores sediados, por exemplo, nos Estados Unidos ou Alemanha, onde o custo de vida e o nível salarial são elevados, passaram a ter de competir em questão de preço com tradutores sediados no Zimbabwe ou em Moçambique, onde o salário diário médio não dá para comprar um café nos primeiros países indicados. Estou a dar exemplos extremos mas reais para realçar o problema. E parto do principio que o nível de qualidade e de profissionalismo de todos eles é igual, o que também é uma realidade. Penso que o resultado é óbvio. É iniciada uma guerra de preços que só beneficiará em primeiro lugar as empresas intermediárias e em segundo os clientes finais, se é que os baixos preços são passados directamente para eles. Este tipo de globalização, que afinal é apenas uma consequência do desenvolvimento das novas tecnologias sem ter havido qualquer tipo de intenção ou planificação anteriores, que não é o caso do acordo de que se está a tratar, fará desaparecer a médio ou longo prazo os tradutores dos primeiros países, que terão de optar ou por outro tipo de especialização, por exemplo, programação, onde a competitividade seja menor, ou mudar de país e ir viver para o Zimbabwe ou para Moçambique (se os deixarem). Outra alternativa que poderiam ter é a de aumentar a sua produtividade de modo a poder competir com preços muito mais baixos, utilizando, por exemplo, ferramentas de tradução automática. O problema é que, por um lado os tradutores dos outros países também têm acesso a elas e por outro os clientes actuais e em especial as empresas intermediárias, incrivelmente, exigem que os tradutores utilizem essas ferramentas esperando assim obter preços irrisórios, retirando benefícios de investimentos para os quais não contribuíram sequer com um cêntimo. Para dar números, por exemplo, um programa CAT custa cerca de 800 € para além do que se terá obrigatoriamente que gastar com a aprendizagem e treino nesse programa e a necessidade de computadores muito mais potentes que obrigam também a investimentos adicionais. Números redondos, contando com o tempo que se terá de gastar com a aprendizagem, a utilização correcta de um programa desse tipo nunca fica por menos de 2.000 €. Para agravar o problema esses programas estão MUITÍSSIMO longe de fazer o que a propaganda de venda dos mesmo indica. O exagero chegou a tal ponto que há empresas que anunciam que a qualidade das suas traduções é inigualável porque os trabalhos são revistos (não é traduzidos, é revistos) com o SDL Trados. Isto seria o mesmo que pedir a um cego uma opinião abalizada sobre uma exposição de pintura.
A globalização também permitiu que tradutores nativos de uma determinada língua, por exemplo Inglês, normalmente residentes num país de língua inglesa e certificados também em Português, possam fazer traduções quer de Português para Inglês quer de Inglês para Português. Normalmente, a vasta maioria dos trabalhos de tradução dentro de um determinado país são de uma língua exterior para a língua desse país e, logicamente, só os tradutores desse país, nativos nessa língua, tinham acesso anteriormente a esses trabalhos. Hoje, com a globalização, os tradutores de outros países passaram a ter acesso e a efectuar também esses trabalhos. O facto é que o conhecimento de uma língua depende em grande parte do tradutor ter sido ou estar residente no país dessa língua. Por maiores conhecimentos que se tenha, nada é comparável aos que se obteriam se estivéssemos nesse país.
Isto para demonstrar que a globalização permitiu também a degradação do nível e da qualidade das traduções. É perfeitamente visível se um texto em Inglês, traduzido do Português, e normalmente com uma boa qualidade, foi feito por um nativo em Inglês ou por um nativo em Português.
Assim, há sempre que comparar os benefícios com os prejuízos e tentar maximizar os primeiros e minimizar os segundos. Daí as minhas perguntas acima - Quais os benefícios que se pretende obter? Como se medem esses benefícios?
Quanto à minha pergunta - Que objectividade, conhecimentos e experiência prática tem as pessoas encarregadas de definir e implementar tal projecto? não estou de nenhuma maneira a questionar a idoneidade ou os conhecimentos dos responsáveis. Mas há mais que considerar para além desses factores. Penso que um dos objectivos deste acordo é a simplificação da escrita tornando-a mais aproximada da fonética. Assim, penso que foi tomada em linha de conta o modo como se pronunciam as palavras tentando corresponder a escrita a essa pronúncia. O problema é que, quando na generalidade se pronuncia mal uma palavra, pode-se cair no erro de a passar a escrever de modo a que se perca o radical e a origem dessa palavra. Vou dar um exemplo. Egipto. É comum e vulgar mesmos nos programas de televisão, noticiários e outros em Português, ouvir pronunciar o nome desse país como e-gi-to. E isso espalha essa fonética errada por todo o lado. Eu pronuncio e-gi-p-to. Também verifiquei que em Inglês é Egypt e em Francês Égypte. Todos provenientes do Latim AEgyptus (o A e o E são pegados mas não tenho esse caracter no teclado) e do grego Aígyptos. E se passar a ser e-gi-to como vamos pronunciar e escrever egiptologia? Neste caso concreto há mais que ver que o conhecimento, embora profundo. Definir as regras e não indicar as excepções pode causar muitos problemas.
Quando se fala de globalização e não uniformização quererá dizer-se a aceitação em Portugal de todos os termos já existentes no Português do Brasil? Como se passará a saber o que está certo e o que está errado? Quem e que entidades controlarão a sua utilização? Será sequer que é possível esse controlo? Que terminologia deve ser utilizada? Vamos aceitar em Portugal os milhares de palavras aportuguesadas directamente do Inglês, como roteamento, ducto, escanear, feed, etc., etc., etc., ou aterrado em vez de ligado à terra, especialmente na parte técnica e que são normal e vulgarmente utilizados no Brasil e conhecidos já do povo brasileiro? A dimensão do problema é muito maior do que parece. Bem basta a utilização diversificada em Portugal por parte de muita gente, que deveria saber melhor, de termos ingleses ou franceses quando existem em Português palavras correctas para os exprimir. É vulgar ouvir na rádio, televisão e ver escrito nos jornais meeting em vez de reunião, overbooking em vez de sobre lotado check in, em vez de registo, inscrição, feedback em vez de resposta, comentário, realimentação, etc., esquecendo que a maioria dos portugueses não sabe Inglês e se ler essas palavras as vai pronunciar mal. Recentemente o primeiro ministro português, na televisão, utilizou a palavra itens mas pronunciada à inglesa (áitemes) esquecendo-se, ou não sabendo, que existe essa palavra em português, que tem a sua origem no latim item e que foi importada do latim para o Inglês.
Quando se fala de "um instrumento de união e não de separação" como pode ser utilizado? Que espécie de união se pretende? Será que se poderá sequer parar a divergência linguística? Não estarão, uma vez mais, por detrás de tudo interesses políticos e económicos de que não se quer falar abertamente? Quanto vai custar economicamente um tal projecto em que todos os dicionários, técnicos, bilingues e não só, gramáticas, livros escolares e mesmo novas edições de livros já publicados que terão de ser substituídos? Ou poderão viver lado a lado?
Quando falo de uniformização refiro-me exactamente a isso, isto é, uniformizar a utilização de termos, quer já existentes quer os que se tenham de adoptar. Lógico que as mesmas perguntas que acima referi são aplicáveis neste caso.
Os problemas que tenho encontrado, quase inultrapassáveis, são vários e de distinto impacto. O primeiro é a falta de controle dentro de uma indústria, serviços de tradução, que pode e tem o poder de transmitir e espalhar por todas as camadas sociais uma terminologia, muitas vezes nova, que passará a determinar o significado de novas palavras e mesmo modificar ou acrescentar a das já existentes, portanto com uma influência marcante no desenvolvimento da língua que, como definem acima e bem, é uma entidade dinâmica. Não existem glossários oficiais e cada empresa e cada tradutor faz o seu, dentro do melhor que sabe e pode. E mesmo que existissem não há, que eu saiba, nenhum organismo oficial que imponha ou determine as regras gerais aceitáveis nas traduções e controle, não só a aceitação inicial de novos termos, mas também a sua utilização.
O segundo tem a ver com o exercício da profissão de tradutor. Como é sabido, existem organismos criados dentro de uma variedade de profissões, como advocacia, medicina, engenharia, etc que regula a prática desses serviços, impõe regras de conduta e selecciona quem pode exercer essa profissão. Quiçá o princípio da sua existência tivesse mais a ver com a defesa dos seus próprios interesses mas o certo é que hoje seria inadmissível viver sem eles. Admito até que outra das razões fosse o impacto que essas mesmas profissões pode provocar na sociedade e os perigos decorrentes, se não fossem controladas e vigiadas. A prisão de um inocente, a morte de um indivíduo ou a queda de um prédio são cenários assustadores para que se aceite sem reservas o controle total dessas profissões. Então, por exemplo, a educação e as traduções não o são também? Quando se aceita que as mesmas possam ser exercidas livremente por pessoas, embora qualificadas a nível universitário noutros ramos, muito embora possa haver controlos particulares à posteriori, penso que se está a aceitar uma degradação facilmente evitável. Porque razão pode um médico ser professor, sem qualificações específicas para tal e não pode um professor, qualificado como tal, exercer medicina? A razão é óbvia, o professor não sabe de medicina. Mas o médico também não sabe de ensino! É generalizada a utilização de licenciados nos vários ramos no exercício da educação, ás vezes por falta de professores qualificados outras por necessidades económicas do próprio indivíduo que, dentro da profissão para que está qualificado, não conseguiu emprego. Exactamente o mesmo se passa no campo das traduções. Não existe qualquer limite legal para o exercício da mesma e é invadida por toda a espécie de pára-quedistas. O facto de se conhecer, melhor ou pior uma língua estrangeira, não devia dar direito ao título e ao exercício de tradutor. Existem normas e princípios rígidos aplicáveis às traduções e ensinadas na aprendizagem correcta da profissão de tradução, que são desconhecidos por quem não tenha frequentado essas universidades ou institutos. Posso nomear centenas de casos. Alguns, com o correr dos anos e a vontade de aprender, são já bons tradutores. Mas isso não invalida o princípio indicado.
Penso que já justifiquei extensamente porque não acredito nesse projecto, nem no seu altruísmo, nem nos resultados que possam daí advir, nem na cooperação e implementação dos países que o assinem, em especial as antigas colónias portuguesas. A história ainda é muito recente para que se possam esquecer agravos profundos ainda não reparados.
Devo ainda acrescentar que não acredito na chamada "democracia" actual em que a vontade de muitos ignorantes prevalece sobre o conhecimento profundo de alguns, conduzindo a situações como a da eleição de George Bush, não uma mas duas vezes, com os resultados funestos que estamos agora a sofrer e que demorarão muitos anos a sanar.
Embora possa parecer pessimista, e tenho fortes razões para o ser, poderão sempre contar com o meu apoio e colaboração em tudo o que possa transformar o nosso mundo num mundo melhor.
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